sexta-feira, 10 de abril de 2009

Aspectos da Cultura Popular na Peça "Gaiola de Moscas"

Devo confessar que a “lição de casa” solicitada foi por mim “quase” esquecida quando me deparei na peça “Gaiola de Moscas” com tantos aspectos da Cultura Popular: na linguagem, na dança, na música. Meu olhar se direcionou muito para isso, tão marcante foi na narrativa esse aspecto. Falou mais alto por um momento em mim esse encontro. Em épocas globalizantes, é sem dúvida de grande importância o “resgate” do que é genuíno na terra local e ao mesmo tempo tão esquecida - a cultura popular. Nesse sentido, pontos consideráveis para o trabalho desenvolvido pelo grupo Peleja.

Ainda que o conto adaptado pela peça seja do Moçambicano Mia Couto (genial!) cabe direitinho no repertório do Brasil/sertão, pesquisado pelo grupo. Lembrou-me inclusive, o contexto da peça e da história, que não é por acaso que o escritor Mia Couto é comparado com um nosso outro grande escritor, Guimarães Rosa. Ambos trazem em suas obras poesia e esperança por meio da capacidade narrativa de histórias contadas por seus respectivos protagonistas na dureza da existência humana.

Mas, se por um lado o meu olhar não foi num primeiro momento, tão teatral, no sentido técnico, seria impossível com as vivências que estamos tendo com “a poética do corpo”, (que o meu me faz lembrar a cada final de semana, por meio das dores) não perceber o quanto na proposta do grupo está intensamente presente a expressão teatral corporal dos atores. Acho que de certa forma todos puderam ver algumas vivências que fazemos sendo utilizadas no palco. O corpo “fala” e o ritmo conduz atores e platéia no encontro da narrativa proposta. Em diversos momentos a encenação me lembrava algo meio “brincante”, como se fosse um convite para que brincássemos também; que nos permitíssemos brincar...ainda que a temática não fosse brincadeira, mas isso só pude perceber mais tarde. Em alguns momentos, para mim, a “brincadeira” ficou meio igual e alguns risos diminuíram (inclusive o meu). Isso de forma alguma tira o mérito da proposta e da atuação dos atores; até porque penso que o riso pode não significar muita coisa. Podemos inclusive afirmar: apesar do elemento cômico sendo explorado o universo temático da peça era bem triste.

Penso ser de grande valor a busca por aquilo que cada vez mais em cidades como a que vivemos é esquecido, o brincar o criar/imaginar, bem como o satirizar a miséria da vida na magnitude da possibilidade da existência em condições tão adversas, onde compramos moscas para nosso velório. Não seria uma forma de resistência a pretensão dos personagens em se virar como dá? Quem sabe? Por que não? Ainda que possa ser também, evidentemente, o limite da pobreza e miséria humana. Mas sem dúvida mostra o poder criativo do povo diante da realidade complexa e complicada do viver, frente o descaso das autoridades (poder) para a possibilidade de uma vida digna.

A peça parece mostrar nas entrelinhas a dureza da vida sertaneja que reinventa/cria formas de trabalho, formas de “ganhar” a vida em local onde não é nada fácil viver (Moçambique/Pernambuco-Brasil). Se por um lado isso pode expressar o cômico/criativo (aspectos da cultura popular) por meio do cuspe (para limpar sapatos) e das moscas (para o velório) mostra também a dificuldade pela sobrevivência... a miséria. Essa realidade sem dúvida marca a vida em Moçambique, bem como a do sertão de PE/Brasil, onde o grupo Peleja realiza pesquisa em torno da manifestação popular Cavalo Marinho. Assim como a literatura de Mia Couto, o teatro, me pareceu, tentou registrar e recriar a situação desse povo, por meio de personagens como Zuzé Bisgate e Julbernardo, transformando miséria em foco do poder criativo do homem, que apesar dela, tenta viver, ou seria melhor dizer, sobreviver.

O trabalho de corpo do grupo resgatando o Cavalo Marinho, a meu ver, dialoga muito com essa realidade dura do sertão brasileiro, o que também faz, pelo pouco que conheço a literatura de Mia Couto com a cultura popular de Moçambique; a junção dessas duas coisas (Cavalo Marinho e literatura de Couto) é muito interessante na proposta do grupo. É importante notar e considerar que a brincadeira do Cavalo Marinho no Brasil é feita exatamente por pessoas despossuídas de recursos, a maioria analfabeta, marginalizada; como os cortadores de cana e pessoas que trabalham em feiras; pessoas muito pobres, carentes, mas com uma cultura riquíssima, fabulosa. Podemos dizer, para finalizar, que é uma manifestação humana que sai da mais absoluta falta de recursos, mas que devido ao poder criativo se expande e chega até nós de diversas formas, inclusive por meio de trabalhos teatrais como esse. A proposta do grupo conseguiu expressar algo singelo e sensível, com recursos corporais fortes e intensos.

(Lenir) Lê Viscovini

Um comentário:

  1. Lenir:

    para quem se duvidava capaz do exercício cênico, eis a grande revelação. como fiquei alegre com tantas informações, vindas de vário lugares diferentes: antropologia, geografia, cultura popular e - o principal-: o movente. o que defendo - e sua leitura (me parece, ao menos) - confirmar é que algo ou nos toca ou não. e é desse lugar que somos autorizados a falar. e é dessa fala que vejo a riqueza de sua leitura. permeia por vários lugares; lugares esses que com certeza experienciou. e essa bricolage resultou nesse texto, que , a mim ao menos, enriqueceu de conhecimento. gostei muito.

    bj,

    diogo

    ResponderExcluir